quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A alma que não nos cabe!

1    Digamos que o seu nome seja Paulo. Empresário conceituado no ramo da siderurgia de transformação. Homem  respeitado na cidade de 500 mil habitantes. Pai exemplar, marido fiel e atencioso e um avo carinhoso. No entanto não suportava a sua vida. 
Como uma música insensata não suportava mais o seu dia a dia.  Numa noite chuvosa mais calma se pois a só na  imensa varanda com vista para uma Serra de Mata Atlântica e protegida por lei, observava a chuva leve e tranquila de um verão que se ia. As quaresmeiras floriram. E mesmo ao seu mundo perfeito e solido, não pode esquecer de todas as manhãs de domingo quando indo a missa com a sua família e passando na praça frente a Igreja onde via homens deitados ao relento de uma manhã hora quente, hora fria, tomava a sua atenção. Aqueles homens trajavam roupas sujas e desconfortáveis. Dormiam sem preocupação alguma, talvez a preocupação de apenas estarem ali. Comida! Sabia que a igreja abria as portas todos os dias para duas refeições, um banho e roupas novas. Depois comiam e iam para a praça passar o dia. Dormiam, brigavam. Para alguns homens  aqueles homens estavam vegetando. Para os ambiciosos eram a repugnação materializada em forma de  homens de tudo o que não pretendiam para as suas vidas. Para outros seres eram  nojentos.Desprezíveis. Não para Paulo! Para Paulo aqueles homens traziam outro foco da vida, que começou a perceber, uma outra percepção de todos os conceitos que até então trouxe em sua vida.  A chuva trouxe uma leveza. E dormiu tranquilo.
    Na manhã seguinte na mesa para o café com a família, comunicou a todos que  ganharam  uma viagem para Bariloche, por uma semana.
  -Uma Semana!- questionou a sua mulher!- E porque todos nós?
  -Você também vem papai! - perguntou uma das filhas.
Paulo, sorriu tranquilo.
  -Porque o espanto.Não posso agradar a minha família !
 - Mas os meus filhos tem aulas! Temos trabalho!
 - Tudo bem meu filho! Que tal um final de semana. E tudo pago por mim!A região de Bariloche começa aficar linda ainda mais linda nesse inicio de outono austral.
Um silêncio passou por todos.
  - Vamos aceitem!
Aceitaram. Mas com certa reserva do porque daquela viagem! Não , não! Paulo, o pai, o avo, nunca fizera nada insensato, nem absurdo, e que não fosse planejado e por todo o seu histórico, aquela viagem não se encaixava com o perfil de Paulo. Terminaram o café da manhã.

  2  Eleonora, a esposa  ficou sentada a mesa, olhando para Paulo enquanto todos se iam daquele café da manhã.
  - Há tempos que somente eu e você tomamos café a sós nessa casa. Exceto ao domingos, mas hoje não é domingo, e você convocou todos para esse café. Deu uma viagem a todos e... Paulo o que está acontecendo.
  - Acho que é a idade!
  - Alguma doença séria que você descobriu. Pode me dizer! Somos casados por isso!
  - Eleonora, não tem nada disso. Eu disse que é coisa da idade! Tenho vontade de agradar mais a minha família, os meus filhos.
  - E você viaja conosco?
  - Ficarei aqui!
  - E porque?
  - Quero um pouco de silêncio.
  - Não acredito!
  - Eu estou dizendo a verdade custa acreditar!
  - Meu Deus! Eu pensei que nunca iria perguntar isso a você! Mas há outra pessoa?
  - Claro que não!
  - Eu não sei não.
  - Bem,  vou trabalhar e a noite iremos jantar fora.

3  Paulo passou pela praça novamente, e pediu para o motorista diminuir a velocidade. Olhou para aqueles homens deitados, alguns sentados, dormindo como donos do nada. Absolutamente donos de nada! Não entendia como conseguiam, ter essa força da vida e viver ali jogados a margem de tudo o que todos sempre querem. Dinheiro, bens, jóias, ações, poder, respeito... Aqueles homens não possuíam nada, nem respeito, e apenas a roupa do corpo. Paulo estava protegido em seu carro blindado e de vidros espelhados, conforto de uma ar condicionado. Observava-os  no conforto de seus milhões, de seu poder, de seu respeito por todos daquela cidade.
No escritório, deu algumas ordens,   um aumentos repentino para todos os empregados e inclusive para os terceirizados. Alegou que se tratava de um beneficio por razão dos bons lucros da empresa. Voltou pra a casa a noite, foi jantar com Eleonora. E a cada instante se mostrava tão natural e comum como todos os dias.Depois do jantar voltaram para a casa e ao passar pela praça olhou para aqueles homens comendo algo que o Exercito da Salvação lhe deu. Pediu ao motorista para acelerar. Não queria vê-los aquela noite. Depois em casa, na imensa sala de  visitas, colocou uma velha canção romântica do Roberto e começou a dançar com Eleonora.
 - Você esta especialmente romântico!
 - E alguma vez deixei de ser!
 - Não que me lembre!
 - Então, quer namorar comigo!
 - Posso pensar!
As mesmas frases ditas todas as vezes que se sintonizavam os sentimentos mais intímos, tão seus, desde que se conheceram. Paulo a abraçou durante a dança, com mais afeto e carinho.  A tomou no colo e carregou para o quarto. Foi uma noite de amor  que Eleonora se entregou como a primeira vez.

4  Sexta-feira todos da família estavam de malas prontas para viagem. Paulo os acompanhou até o aeroporto e ao se despedir sorriu como o velho pai, que estaria ali quando voltassem, o avo, e principalmente o marido.  E confiantes partiram para viagem. Eleonora no entanto, sabia que algo acontecia com o marido, mesmo que ele expressasse estar tudo bem, algo em seu olhar brilhava fora do tom habitual, um brilho estranho que só se percebe quando a mais de trinta anos vivendo com a mesma pessoa aprendesse a saber de seu olhar , habituasse a  entender esse olhar. E para Eleonora o mais estranho era o fato que sabia que Paulo sabia que ela sabia.
Paulo a sós em sua casa, deixou a barba crescer, não tomou banho e comeu algo qualquer. Depois tomou algumas roupas velhas, botou numa sacola e dispensou todos os empregados da casa inclusive o motorista, premiara a todos com uma folga no final de semana. Deixou o celular em casa, e os documentos todos. Pegou um RG falso, e nenhuma foto da família. Saiu da mansão  e correu com o carro a mais de cem quilômetros da cidade. Deixou o carro abandonado numa estrada vicinal, vestiu as roupas velhas e começou  a caminhar com um andarilho. Queria suar, sentir o que é enfrentar o mundo sendo ninguém, queria experimentar a noite solitária, o desprezo de todos, ser ignorado como todos moradores de rua. Queria sentir cansaço e fome, frio e medo. O oposto em sua vida até então nada  disso  havia acontecido. Herdou as empresas do pai, sempre teve o conforto e a segurança do dinheiro. Agora caminhado numa noite escura, sentindo o mundo sem o seu dinheiro, começou a sentir um  estranho conforto. Um conforto em sua alma. Um conforto de alma.

5 Dois dias caminhado e pedindo o que comer e beber. A essa altura a sua família já estava de volta da viagem e deveriam saber que algo aconteceu. Mas ia esquecendo-os, porque não cabia mais naquele mundo.O seu mundo era aquele que sentia agora. Não não é crueldade, nem desprezo pela família e tudo o que se tem nessa vida. Se trata de uma necessidade da alma, de sua alma sentir o mundo que nunca sentiu.Realizaou tudo na vida, como pai, empresário, filho, marido, avo. Agora era a vez do seu eu. A simplicidade de algo que sempre lhe faltou.
   Encontrou uma cidade pequena, uma praça, e pela primeira vez em sua vida, de barba crescida suado e sem banho, sentou-se num banco da praça em seu silêncio observando a todos . Ficou ali da manhã que chegara a cidade até depois do almoço. Sentiu o estômago roncar de fome, água bebeu do banheiro público. Sentiu cheiros de tempero que as casas faziam para os seus moradores. Mas não queria comer, precisava sentir a sua fome. Síndrome de São Francisco? Devoção aos apóstolos e Jesus Cristo? Talvez, mas o que ia em sua alma, era essa necessidade de sentir o que nunca sentiu. Estava bem, incrivelmente bem.
Um senhora com sua netinha, aproximou-se e trouxe um prato de comida. Arroz, feijão, linguiça e um pedaço de pão, uma garrafa de água. Que gentiliza, que humanidade. Um senhora simples, que se comoveu com a sua situação.  Comeu, bebeu, agradeceu. E percebeu que se ficasse ali, não seria um mendigo completo. Sim porque as pessoas das cidades pequenas, são mais pessoas do que as pessoas da cidade grande. Tem mais tempo para a compaixão. Ali seria alimentado e tratado bem. Paulo tomou o caminho da capital, a liberdade e o horizonte que a rodovia lhe agradava trazendo em sua alma um conforto que nunca experimentou antes. E com o tempo acreditou que a sua família  aceitariam a seu desaparecimento mesmo não sabendo que estava bem. Agora as ruas lhe pertenciam.

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Ulisses j. F. Sebrian

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